Eu só tinha um nome: “Soffia” e uma carta que certamente revelaria os segredos que fariam com que toda aquela aventura matutina fizesse sentido. Mas por hora, segurar a sua mão já me parecia o bastante.
- Eu trabalho perto daqui. Lá estaremos seguros e poderemos pensar numa maneira de te ajudar – seja lá no que for.
- Num museu?
Se ela não estivesse tão abalada eu poderia jurar que novamente se referiu ao meu trabalho com um inexpugnável desdém. Confesso que neste momento meu humor negro fez-me pensar na ideia de soltar-lhe a mão e deixar que se perdesse na multidão. É, isso pareceu-me uma opção razoável. Mas por aqueles olhos eu jamais o faria, nem mesmo por brincadeira.
Ali estavam duas coisas que me obcecavam desde os tempos de adolescente: uma mulher bonita e um grande mistério. Os dois juntos então, era tudo que meus entediantes dias precisavam para me fazer sentir vivo novamente.
Após algumas quadras chegamos ao prédio de arquitetura colonial com grandes arcos e pedras expostas, de portões grandes, feitos de barras de ferro tão grossas que mal se podia fechar uma entre as mãos.
- É aqui?
- É.
Eu retirei do bolso da jaqueta um molho de chaves e abri o cadeado que mantinha os portões trancados.
- Ainda não chegou ninguém? – Ela perguntou, observando que até àquela hora o portão ainda estava fechado.
- Hoje é terça e o museu não abre. Eu tenho a chave porque não tenho hora para vir aqui e sempre venho fora de hora. Além do mais não tenho muito que fazer fora daqui. Fora destas velhas paredes eu me sinto meio perdido.


Levantei-me, peguei a sua mão e disse em tom firme: “– Venha comigo, eu tenho uma idéia!”
- Hã? Para onde?
- Confie em mim. A cafeteria já esta ficando muito movimentada e tenho a impressão de que você não vai se sentir segura aqui. Venha comigo e ficará tudo bem.
[Soffia olhou novamente ao seu redor, ainda atordoada e sem ter certeza de nada, porém, sentiu tanta firmeza naquelas palavras e nas mãos que seguram as suas que se deixou levar por Arthur.]
Enfiei a mão bolso da calça e tirei algumas notas amassadas que somavam um pouco mais do que seria nossa conta e joguei sobre a mesa, acenando para o garçom, que já estávamos de saída.
- Mas para onde você quer me levar? - Insistiu ela.
- Vou te levar para um lugar seguro, onde poderemos conversar e você poderá decidir o que vai fazer da sua vida, está bem? Não sei exatamente o que você esta evitando mais com certeza não deve ser algo muito agradável e imagino que você não deve ter muitas opções de destino, já que seus planos de ontem não deram muito certo e provavelmente voltar para onde você veio não deve ser uma opção no momento.
Ela me interrompeu com muito medo no olhar e me olhando diretamente nos olhos enquanto apertava minhas mãos, implorou:
- Eu não posso voltar para lá! Me ajuda! Por favor, não posso! Me ajuda!
Ela agarrou-se as minhas mãos como quem se agarra a sua última esperança de vida e praticamente me implorou para não deixa-la sozinha, para não abandoná-la também. Como se eu pudesse. Como se eu já não estivesse suficientemente enlouquecido por aquela mulher sobre quem nada sabia.
- Não tenha medo, nós vamos para um lugar seguro.
Nos misturamos as pessoas pelas calçadas, ruas e ao longo do calçadão. Eu a guiava segurando sua mão e ela se matinha firme me acompanhando.
Eu ainda não sabia o que a afligia , mas certamente não haveria de  ser apenas mais um namorado ciumento ou um simples desentendimento familiar.


- Você esta com fome? Moça? Soffia!? E somente quando ouviu seu nome ela se virou e novamente com um aceno de cabeça e um murmurinho, respondeu que não.
Ela parecia buscar com o olhar, identificando em que ponto da cidade estaria. Olhou ao redor, viu placas na calçada, o nome e endereço da cafeteria no cardápio que estava sobre a mesa e viu as horas, olhando freneticamente para o relógio acima do caixa ao lado de um desses anúncios de cigarro.
Percebi que se inquietava, angustiada com aquela situação ou ainda talvez ainda sofresse os efeitos da noite anterior. Algo a incomodava demais e quando pensei que estaria prestes a recobrar sua lucidez, suas feições mudaram de repente e pude notar seu semblante se convertendo em uma expressão de desespero que a levou a chorar novamente, quando cobriu o rosto com as mãos.
O que fazer?
Eu já estava tão envolvido com aqueles lábios grossos, com o perfume e com aqueles olhos - e que olhos – que minha perspicácia já estava sendo afetada o que me levou a hesitar, apenas observando aquela cena ao invés de agir instintivamente como normalmente faria, propondo a alguma solução para sua aflição.
Balancei a cabeça como que tentando me livrar da imagem absolutamente encantadora de Soffia e dos efeitos de seu perfume numa tentativa de raciocinar com clareza e solucionar aquela situação.
Eu precisava ganhar tempo.
Respirei fundo, olhei ao meu redor meticulosamente. Eu precisava pensar rapidamente, pois aquela situação não tardaria em se desembaraçar com ou sem a minha ajuda o que neste segundo caso significaria vê-la partir sem poder saber mais nada sobre ela e sem provavelmente nunca mais poder vê-la.
Não era hora de me perder em pensamentos ou possibilidades, eu tinha que agir, e agi.


Olhei para o garçom, próximo dali, que entendeu o sinal que lhe fiz com a cabeça, indicando que trouxesse outro café.
- Você vai pedir outro? Mas este aqui era seu. E além do mais, é muito para mim. Tome comigo...
Detive-me por uns instantes observando-a enquanto tomava seu/meu, enfim, nosso café. Aqueles traços delicados, a boca vermelha, aqueles olhos tão expressivos que me faziam imaginar milhares de coisas que naquele mente se passariam.
Eu já conseguia sentir seu perfume. Um odor adocicado, envolvente, sensual. Fechei meus olhos e por um instante viajei naquela fragrância e senti meu coração disparar.
Quem poderia ter deixado tão linda mulher assim desamparada? Que homem em sã consciência abandonaria uma criatura tão magnífica, tão formosa, uma figura tão apaixonante como Soffia?
Minha capacidade de traçar perfis e desvendar mistérios estava sendo abalada por minha súbita admiração por aquele rostinho maravilhoso e pelo feitiço daquele perfume e eu já não raciocinava com a devida clareza.
- O que você faz? - Perguntou-me.
- Bem, eu trabalho perto daqui no Museu de História e Arte Popular.
- Hum, legal - Respondeu-me com o entusiasmo de uma criança que recebe meias como presente de natal.
Não que eu já não estivesse acostumado, afinal, nestes 10 anos como diretor do Museu de História e Arte de Popular da cidade não foram muitos os relacionamentos que comecei em virtude das mulheres se derreterem pela minha profissão. Arqueologia e História não são exatamente profissões muito exaltadas numa sociedade que cultua o eletrônico, o esportivo, o radical.
Notei que ela relaxara na cadeira, recostando-se e olhando ao seu redor como quem estivesse despertando de um sono profundo perguntando-se: “mas onde estou, afinal?”  


A MENINA VERDE
(a história de uma palmeirense contada por um corintiano)
Carlinha era uma doçura em forma de menina.
Era bonita, alegre, divertida, contudo, Carlinha tinha um grande defeito, quase que uma maldição: Carlinha era palmeirense.  Isso mesmo, linda, jovem, uma vida inteira de sonhos e realizações pela frente, mas ela incutiu-se de ser palmeirense.
É, fazer o quê? Já era tradição da família chegada da Calábria no litoral italiano e desde os tempos do saudoso (não sei pra quem) Palestra Itália que já sofriam os desprazeres de torcer pelo time verde do Parque Antártica.
Seu pai, “Seu Tião” como era conhecido a ensinou (ou contagiou, não sei) desde pequena a torcer pelo time verde (o que no meu mundo deveria render a ele pelo menos uns quinze anos de prisão por desencaminhar uma menor de idade, mas como esse não é o meu mundo, segue a história...).
Esta triste sina a trouxe muitos, realmente incontáveis desprazeres, mas uma vez por outra, algumas alegrias (afinal, as pessoas precisam de tão pouco para se sentir felizes, que qualquer 1x0 no XV de Piracicaba já servia), o que não havia sido o caso naquela tarde.
A gloriosa equipe esmeraldina tão orgulhosamente chamada por seus torcedores de “Verdão”, naquele dia não passara de um verdinho desbotado, um verde pálido, no máximo. Eram os idos do Brasileirão 2011 e haviam apanhado de 2x0 de um time mediano que ainda não tinha ganhado de ninguém.
Clima de revolta e desânimo na casa do Seu Tião.
Carlinha era intempestiva, emotiva como boa italianinha que era, beirava o desespero quando seu time perdia (o que, diga-se de passagem, era frequente) e naquele 26 de junho não foi diferente. Ela xingava, esbravejava, culpava o juiz, o goleiro, a cor do gramado e até os corintianos (?) que por sinal, longe dali, massacravam um outro timinho médio mas esta já é uma outra história.
Quando viu que já não havia mais o que fazer e que apesar de todos os gritos, sofrimentos e xingamentos (inclusive aos pobres corintianos) saiu chutando e socando o ar, como se diz popularmente: “cuspindo marimbondos”.
Saiu de casa e foi para o lugar para onde gostava de ir sempre que queria ficar sozinha: um dos pastos da fazenda onde ficavam seus dois amigos: Soberano e Faruk, dois cavalos com quem ela costumava conversar quando se sentia triste.
Ela os chamava pelos nomes e às vezes eles até atendiam. Vez por outra ela levava espigas de milho ou alguma outra guloseima para seus amigos, para incrementar o diálogo com eles.
Ressentida pelos recém desprazeres verdes sofridos naquela tarde ela queria e muito mais que isso, precisava conversar e ninguém para ouvi-la melhor que os atentos Soberano e Faruk.
Eram machos adultos, ambos de pelagem marrom. Soberano tinha patas peludas e uma cicatriz no peito, provavelmente fruto de alguma aventura amorosa que lhe exigiu que literalmente pulasse a cerca. Faruk tinha olhos brilhantes (os dois) e uma longa calda branca (só para registro, Soberano também tinha rabo e era marrom).
Carlinha subia na porteira e levava as espigas de milho e outras iguarias numa sacolinha. Ela os chamava e eles geralmente - provavelmente em busca do lanchinho ou de uma boa conversa, quem sabe – atendiam-na prontamente.
Ela perguntava como estavam, como tinha sido o dia deles, afagava suas cabeças e eles respondiam comendo (só comendo mesmo).
Daí, ela falava do tempo, sobre a escola, sobre algum garoto interessante que tivesse conhecido e até as piadas que recebia pela internet ela compartilhava com eles.
Só tinha um assunto que Carlinha não costumava a tocar nessas conversas: futebol. Não que não fosse um de seus assuntos favoritos, mas aqueles diálogos com Soberano e Faruk ela reservava para falar sobre assuntos que a distraíssem das tristezas da vida, evitando, portando, temas que a deixassem magoada, e como o tema “palmeiras” geralmente a deixava magoada, ela raramente tocava no assunto.
Mas naquela tarde ela estava tão irritada, mas tão irritada que não se conteve e acabou desabafando:
 - Ai que ódio! ‘To’ morrendo de raiva! Como o palmeiras perdeu aquele jogo? ‘Tava’ fácil! Não tinha como perder! Era só jogar direito! Não fizemos nem um golzinho, acredita? Ai que ódio! E o pior não é isso! O pior vai ser aguentar a gozação daqueles corintianos idiotas, amanhã na escola! Ag, amanhã não tem aula, menos mal. Mas mesmo assim, que ódio! ‘To’ até vendo as mensagens no celular e os e-mails! Ai que ódio!!!
Realmente o sangue italiano fervia nessas horas e ela literalmente chorava de raiva.
- Vocês é que tem sorte. Não torcem pra ninguém. Não ficam desse jeito, né? Não precisam sofrer, nem ficar brigando por causa de time. Vocês não sabem a sorte que tem. Acho que eu vou largar mão disso também. Nunca mais vou ver um jogo do palmeiras. Nunca mais vou torcer de novo. Pra quê? Só pra focar sofrendo? ‘Acha’?
No fundo ela sabia que seu coração ítalo-brasileiro era palmeirense até a morte e que no próximo jogo ela estaria ali novamente torcendo, chorando, sofrendo e por que não, sorrindo?
Era mais forte do que ela e para Carlinha era como uma dorzinha gostosa que ela sentia no peito. Algo que ela não abandonaria e não a abandonaria, jamais.
- Sabem de uma coisa? Da próxima vez eu vou torcer mais ainda. Quem sabe não traga mais sorte para o time. É isso mesmo! Hoje foi azar, mas no próximo jogo ninguém segura o verdão - e já dizia isso enxugando as lágrimas com um sorrisão no rosto, lindo e radiante como tudo mais que vinha dela.
- Bom, agora vou voltar para casa. Foi bom falar com vocês, tchau! E se despediu deles com mais um afago em cada um antes de descer da porteira e voltar correndo para casa, toda serelepe.
Os dois cavalos entreolharam-se como se pudessem balançar os ombros dizendo:
“ - você entendeu alguma coisa?”.
“- Não e você?”
“- Nem me fale, a propósito você soube o resultado do jogo do timão?
“- Sóooooo, mandamos ver pra cima dos bambis, hehehe.”
E se afastaram da porteira lentamente com largos sorrisos nas caras.


- Experimente.
Ela aproximou os lábios da caneca e estendeu as pontas dos dedos para segurá-la.
- Ainda não sei o seu nome.
- Soffia.
Soffia era jovem, aparentava pouco mais de vinte anos, vinte e dois, eu diria. Cabelos pretos, cacheados com mechas clareadas e bastante ondulados. Tinha grandes olhos castanhos, penetrantes como uma noite de inverno, decorados por sobrancelhas bem trabalhadas, o que reforçava minha idéia de que se tratava de uma moça vaidosa. Bem maquiada, bochechas rosadas e grandes lábios vermelhos, muito vermelhos.
- Você gosta de creme no café?
Ela levantou timidamente os olhos e acenou que “sim”.
- Que bom porque eu pedi sem creme e ele trouxe com.
Ela esboçou um sorrisinho ainda muito tímido e ainda bastante sem graça.
- Eu não tenho dinheiro - explicou-se, meio que retornando ao mundo dos vivos (o café parece ter-lhe feito bem).
- Tudo bem, eu também não tenho. Quando eu disser “já” a gente se levanta e sai correndo.
- Hã?!
- É brincadeira, fique tranquila.
- Você é meio doido, não é?
- Sou, mas não espalhe porque ninguém mais percebeu ainda, rs.
Ela sorriu, agora com um pouco mais de desinibição, balançando a cabeça negativamente. As bobagens que eu havia dito pareciam de certa forma, ter feito algum efeito positivo sobre ela (além do café, é claro)



Eu adoro a beleza despretensiosa dos dias comuns,

das horas comuns, em lugares comuns
... a beleza dos cabelos presos sem a imposição que o glamour imprime ...
... a beleza do rosto sem maquiagem ao doce sabor do que a própria natureza já se incumbiu de esculpir...
... a beleza do simples...
... a beleza das formas descritas numa calça jeans
e num uniforme de trabalho ...
... a beleza que não precisa de “rimels”, “glitters” ou saltos
... a beleza que fica longe dos holofotes porque não precisa deles...


(a minha amiga Katiezinha)


Klinker


Percorri cada centímetro daquela cena procurando uma pista, um vestígio que me fizesse entrar em sintonia com ela novamente. Eu precisava de algo expressivo, forte, algo que a chamasse de volta para a conversa comigo.
Olhei novamente seu penteado, suas roupas, a maquiagem levemente desfigurada, as mãos ansiosas – eu tinha que ser rápido, neste jogo perde-se pelo tempo também, e eu estava a segundos de vê-la partir para sempre...
– A carta – pensei comigo – a chave está na carta, mas ela não a confiaria a mim para mostrá-la assim e o simples fato de tocar neste assunto pode desencadear sua partida.
Notei que estava trêmula. O relógio ainda não marcara sete horas e o clima no mês de junho já era razoavelmente frio. Ela juntava as pernas cobertas apenas por uma meia calça, além do vestido, buscando aquecê-las sem muito sucesso.
Retirei meu casaco e o coloquei sobre ela como uma manta. Percebi que imediatamente parou de tremer e me olhando com ares muito tímidos embora agradecidos me perguntou:
- Você não vai ficar com frio?
- Eu estou bem, não se preocupe. Mas você poderia aceitar um café.
- Não, obrigada. Eu estou bem.
Quando novamente fomos interrompidos pelo garçom que trazia meu café.
O aroma dos grãos recém torrados, adocicado pelo açúcar do creme trouxe um elemento inusitado para nossa conversa. Percebi seu olhar acompanhando a bandeja enquanto o garçom me servia.
Segurei a caneca e a ergui em sua direção. A precipitação da fumaça que deixara a caneca parecia enfeitiçá-la e vi seus olhos se fecharem para saborear os efeitos que o adocicado aroma nos proporcionara.
Eu havia encontrado o elemento de que necessitara para atrair de novo sua atenção...


Ela ouviu impacientemente o relato deste estranho que parecia conhecê-la tão bem, e em seu íntimo perguntou-se se sua situação seria assim, tão transparente, tão nítida até para os olhos de um desconhecido.
“– Posso saber quem é você?” – Ela me perguntou.
- Algumas pessoas me conhecem por Arthur, aos seus serviços, senhora. – E curvei-me reverentemente com um sorriso irônico de quem propositalmente vestiu-se de um gentil personagem para agradar aquela frágil dama.
“ – Bobo. Levanta daí.”
Nesse momento fomos interrompidos pelo atendente da cafeteria:
“ – Já pediram?”
Virei meus olhos calmamente em sua direção, apenas levantando a sobrancelha e antes de responder ao inoportuno garçom voltei-me a ela e toquei gentilmente suas mãos cruzadas, esfregando-se sobre a mesa:
- Você aceita um café?
Ela respondeu apenas balançando a cabeça negativamente. Voltara a ficar transtornada, e tive a impressão de que o impacto inicial de minha abordagem já perdera seu efeito e ela havia se transportado novamente à noite anterior, que para mim ainda era um mistério.
Mantive meu olhar o mais atento que pude em cada gesto, em cada sinal em que ela pudesse me revelar mais de sua estranha aventura noturna. Virei-me rapidamente para o garçom pois não poderia perder o foco por nem um segundo da dama em vestes rubras, tão rubras quanto a sua tez seria se não estivesse empalidecida pelo frio.
“ – Me traga um café, numa caneca grande, sem creme.”
Esforcei-me para por a trabalhar cada neurônio em busca de palavras que pudessem trazê-la de volta, de seu estado semi-catatônico. Eu sabia que uma palavra mal colocada, ou uma expressão infeliz poderiam fazê-la partir sem olhar para trás, sem sequer dizer seu nome.


- Também não pude deixar de notar que está usando tênis e apesar de não acompanhar as tendências para o outono-inverno, eles não combinam muito com esse vestidinho vermelho que você esta usando por baixo do casaco. O que me diz que você saiu de casa com uma intenção, mas teve que mudar seus planos drasticamente de acordo com os acontecimentos que se transcorreram durante a noite.
Ela se manteve me olhando com o mesmo ar pasmo, como quem tentasse decifrar quem eu seria e como teria percebido aqueles detalhes todos em tão pouco tempo. Contudo, como continuou me ouvindo com atenção, permiti-me prosseguir relatando as evidências que acabara de colher. Apontei meu dedo sutilmente para os cabelos sobre sua testa e observei ...
- Embora você os tenha disfarçado um pouco, ainda posso notar alguns fios rebeldes das suas madeixas destoando do penteado, além da maquiagem de noite que você provavelmente retocou há pouco tempo, pois apesar do rosto inchado por, provavelmente ter chorado, ela esta quase intacta a não ser pelas lágrimas mais recentes.
- Mas isso tudo seria conjectural se eu não tivesse visto o pequeno maço de papéis com bordas verde-amarelas que você colocou no bolso quando me aproximei. Notei que era uma carta pelas bordas coloridas do envelope e o restante dos aspectos que eu acabei de descrever me deram mais convicção sobre esta situação toda.
Às vezes ser um bom observador faz toda a diferença, sobretudo quando se vive num mundo em que as pessoas andam tão apressadamente que sequer se dão conta daquilo que está ao seu redor, mesmo que seja um elefante verde ou mesmo uma linda mulher às lágrimas. E continuei ...
- E é claro que seus olhos vidrados, fixos em mim enquanto falava, o movimento de suas sobrancelhas, de sua testa e até dos seus ombros, indicavam que estava concordando comigo. Vocês mulheres revelam muito do que pensam em seus gestos, ainda mais quando estão se sentindo fragilizadas. 


“– Do que você está falando? Eu só estou assim porque recebi uma notícia ruim sobre meu pai.”
“– Seu pai, né? Err, escuta moça, aquele bar ali tem um cafezinho excelente, você não gostaria de me acompanhar numa xícara?”
“– Eu nem te conheço, por que acha que eu iria tomar café com você?”
“–Por quê? Em primeiro lugar, porque você mente muito mal. Essa carta que você enfiou de qualquer jeito no bolso do casaco, por acaso, não seria uma carta de despedida de alguém que disse adeus com palavras amorosas, mas cheias de pesar, dizendo que te ama, mas que não pode mais continuar te enganando, seria?”
Ela arregalou os olhos, com quem perguntasse: quem é você?
Estendi-lhe o braço, oferecendo-o para ela se apoiar: “– Com creme ou sem creme?”
Ela relutou por meio segundo, mas resolveu me acompanhar a mesa da cafeteria ha alguns metros dali.
– Quem é você? Você me conhece? Conhece ... ele?
- Não, não conheço você, nem ... “ele”.
- Mas como sabia da minha carta, e do que ela dizia?
- Não sabia. Mas vejamos: você estava inerte no meio de uma onda humana de pessoas que saiam para trabalhar, como quem estivesse sozinha sentada à frente de sua própria penteadeira, em pleno domingo (acontece que hoje é terça e você estava no meio de um calçadão), e se isso não fosse suficiente para perceber que algo de muito grave havia acontecido com você, seu olhos estavam quase catatônicos, me dando então esta certeza. 


Outro dia, estava eu parado ali, olhando pro tempo, vendo as pessoas correrem pra lá e pra cá, cuidando de suas vidas, como formigas num jardim, quando no meio da multidão um par de olhos me chamou a atenção. Estavam tristes, ela chorava.
Não chorava convulsivamente, mas chorava.
Nossos olhares se cruzaram por um instante e ela me viu.
Fixou seus olhos em mim, depois de olhar ao seu redor como quem acabara de se dar conta que chorava no meio de uma multidão que estava ocupada demais com contas, compromissos e horários para perceber aquele par de olhos perdidos ali no meio.
Movi a cabeça pra lá e pra cá, tentando em vão esquivar meu olhar dos transeuntes que iam e vinham, procurando não perder meu contado com ela.
Tive a impressão de que ela fazia o mesmo.
Me aproximei, tentando não ser pisoteado. Sim
Ela permaneceu imóvel, ali, entre as pessoas que iam e vinham. Seus olhos ainda estavam vermelhos, mas as lágrimas ela disfarçara. Me olhava, com certa curiosidade e provavelmente algum receio.
Me aproximei mais e percebi que ela tinha um pedaço de papel e o que pareceu ser um envelope nas mãos.
“Uma carta.” – deduzi – “Mas quem ainda lê cartas?”
“– Oi.” – disse a ela sem maiores apresentações.
“– Oi.” – me respondeu abaixando o olhar, procurando disfarçar os olhos vermelhos e evitar a situação constrangedora.
“– Desculpe, moça, mas você está bem?”
Ela só me respondeu com um aceno de cabeça, dizendo que “sim”.
Ela exalava um perfume doce, doce até demais para aquelas horas da manhã.
“– Ele te deixou, não foi?” 


Enquanto ainda não concluímos como terminará o nosso "Conto na Madrugada" (ainda aguardo mais comentários aqui!) deixo vocês com um aperitivo do próximo conto: "UM CAFÉ PARA DOIS".


Espero suas sugestões para a composição dos personagens, cenários, tramas etc.


(KLINKER)


Após alguns minutos, o fechar da torneira acabou por encerrar também suas lágrimas e ela se voltou ao mundo real, mas agora com um estranho otimismo, com uma estranha sensação de que sua vida mudaria a partir dali.
Antes daquele sonho bendito, ela não tinha mais expectativas de buscar um vida melhor, mais vibrante.
Agora, após aquela estranha e doce experiência com seu amado Juan ela já sabia o que queria para si, já sabia como queria ser tratada e estava decidida a não mais aceitar para si, nada menos que o melhor e iria tirar da vida tudo o que a vida tinha a lhe oferecer.
Seria seu grito de independência, sua proclamação de vitória, sua suprema conquista do mundo.
Porém, não era o que a manhã seguinte a reservaria, contudo, sem saber disto, ela adormeceu. 



O fim está próximo.

Estamos nos aproximando do fim nosso  "CONTO NA MADRUGADA", e a próxima parte que postaremos é a última escrita. 

Entre com seus comentários e diga se ele deve continuar ou se começaremos uma nova história. 

Valeu pela "audiência" 
(2.000 acessos em 20 dias, uhúúú!!!) 

KLINKER


Juan era apenas uma lembrança em seus atordoados pensamentos, um sobro, uma alma, um anjo que ela conheceu num sonho e que mesmo assim passara a fazer parte da sua vida, daquele dia em diante.
A voz firme e serena que a ela transmitia segurança e paz agora só prevaleceria em seus pensamentos, as mãos fortes e suaves não mais a tocariam deixando de levá-la a delírios de prazer e alegria, a boca, o beijo que a enfeitiçaram como se fossem o toque de um anjo, não passavam de reflexos projetados nas paredes do seu subconsciente.
Juan não existia, senão em sua imaginação e ela se amaldiçoou por ter sido tão tola e por aqueles instantes ter crido que era tudo real.
A ela só restava enxugar o que restou das lágrimas, encontrar forças para se levantar do chão frio coberto pelo manto fino e úmido da madrugada e retornar à sua vida real.
A distância que a separava dali até o banheiro parecia interminável, pois mais que a distância em si, mais que a dormência em seu corpo, mais que o frio ou as dores por ter ficado horas deitada no chão duro e frio, era a sensação de vazio, a vontade de não continuar, de não dar mais nenhum passo. A nítida sensação de que não havia mais porque seguir em frente, se a realidade em que se encontrara jamais mudaria, e ela jamais sentiria novamente as emoções que se seu amado e imaginário Juan lhe provocava.
O vapor do chuveiro encobriu parcialmente seu corpo assim como suas lágrimas que voltaram a cair.
“– Deus, como pôde ser? Foi tudo tão real. Ele estava ali, aqui, comigo, me tocando, falando comigo, me beijando e me fazendo sentir a mulher mais importante do mundo, nunca me senti assim, amada, desejada, protegida. Como pode ter sido apenas um sonho?”


Você Aprende...


Sim, aquilo era um sonho, e ela só não sabia ao certo em que momento da noite ele começara, talvez ela sequer tivesse saído de casa, quando adormeceu e sonhou com toda aquela aventura, sim, era isso. Tudo não passara de um sonho, de uma junção de pensamentos, de idéias que ela provavelmente tirara de algum filme ou livro que se fundiram com seus próprios desejos criando vida e dando forma aqueles momentos espetaculares.
Tudo estava perfeito demais para ter acontecido de verdade. No mundo real, homens gentis, carismáticos e tão atenciosos não existem e se existem devem ser tão raros que a chance de uma mulher como ela os encontrar seria a mesma que se conseguir contar todas as estrelas do céu.
Ela chorou.
Normalmente quando acordamos de um sonho bom, nos sentimos de certa forma entristecidos e com vontade de voltar para o mesmo sonho e quando percebemos que isso não é possível, despertamos com a sensação de vazio no peito e nos entregamos a dura realidade de que aqueles momentos incríveis não passaram de pensamentos, de ilusões projetadas pelo nosso cérebro.
Mas o que Jacque sentiu naquele momento foi algo muito mais profundo. Algo tão extremamente lancinante, que a fez chorar, e soluçando praguejar contra os deuses, insultando-os, desafiando-os por permitirem que ela tivesse se iludido assim, sonhando com um homem e com uma série de acontecimentos maravilhosos que ele lhe propiciara.
“ – Nãããããooo, não, não, não!!! Por que, por que?????!!!!! Por que me enganaram assim, porque deixaram eu me enganar assim? Que foi que eu fiz pra receber essa tortura, pra merecer esse castigo? Me digaaaammm!!!!
E chorou copiosamente até não ter mais forças e quando as lágrimas secaram procurou forçar para se levantar do chão frio em que estava deitada e não as encontrou, e ali  permaneceu por intermináveis horas. 

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